segunda-feira, 4 de março de 2013

Feios


Um carro voador passou pelo local, obrigando Tally a se agachar. Provavelmente seria pega aquela noite e nunca se tornaria perfeita. Ela merecia aquilo por ser tão idiota. Mas Tally se lembrou da promessa feita a Peris. Ela não seria pega; tinha que se tornar perfeita para ele. Uma luz no canto dos seus olhos a fez se agachar e espiar por entre as folhas do salgueiro. Havia uma guarda no parque. Não era jovem, mas sim uma perfeita de meia–idade. A luz do fogo deixava os belos traços da segunda operação nítidos: ombros largos e queixo imponente; nariz afilado e maçãs do rosto firmes. E a mulher transmitia a mesma autoridade absoluta das professoras de Tally em Vila Feia. Tally engoliu em seco. Os novos perfeitos tinham seus próprios guardas. Só havia uma explicação para a presença daquela mulher mais velha em Nova Perfeição. Estavam à procura de alguém. E determinados a achar essa pessoa.
A mulher lançou o facho da lanterna sobre um casal num banco, iluminando–o por apenas um segundo, o suficiente para confirmar que eram perfeitos. Diante do susto do casal, a guarda deu um risinho e pediu desculpas. Tally ouviu a voz baixa e segura que tranquilizou os
novos perfeitos. Se aquela mulher dizia estar tudo bem, devia estar mesmo. Tally sentiu vontade de se entregar, se entregar à piedade e à inteligência da guarda. Se explicasse tudo, ela entenderia e ajeitaria as coisas. Perfeitos maduros sempre sabiam o que fazer. Mas havia a promessa a Peris. Ela voltou à escuridão, tentando ignorar a péssima sensação de ser uma espiã, uma bisbilhoteira, de não se entregar à autoridade da mulher. Fugiu pelo mato o mais rápido que pôde. Perto do rio, Tally ouviu um barulho. Podia notar um vulto diante das luzes que vinham da água. Não era um casal. Era uma pessoa sozinha no escuro. Só podia ser um guarda à sua espera. Tally mal tinha coragem de respirar. Havia parado no meio de um movimento, com o peso todo do corpo num joelho e numa mão enlameada. O guarda não a vira. Se ela esperasse pelo tempo necessário, talvez ele fosse embora. Ela aguardou, imóvel, por intermináveis minutos. A figura não saiu do lugar. Eles deviam saber que os jardins eram o único caminho protegido para se sair de Nova Perfeição.
O braço de Tally começou a tremer. Os músculos reclamavam de permanecerem naquela posição por tanto tempo. Ela, porém, não tinha coragem de passar o peso todo para o outro braço. Um simples som de galho quebrado bastaria para entregá–la.
Ela se segurou até que todos seus músculos estivessem gritando de dor. Talvez o guarda fosse apenas uma ilusão provocada pela luz. Talvez não passasse de um produto de sua imaginação. Tally piscou os olhos na esperança de fazer a figura desaparecer. Não funcionou. A pessoa permanecia ali, seus contornos definidos pelas luzes trêmulas vindas do rio. Então um galho se partiu sob seu joelho – os músculos doloridos de Tally finalmente a entregariam. A figura, contudo, não se moveu. Não era possível que ele, ou ela, não tivesse ouvido... O guarda devia estar lhe dando uma chance de se entregar. Desistir. Às vezes os professores faziam aquilo na escola: deixar claro que você não tinha como escapar e obrigá–lo a confessar tudo. Tally limpou a garganta e falou de um jeito patético, baixinho: – Sinto muito. A figura deu um suspiro. – Ah, tudo bem. Não tem problema. Também devo ter assustado você. A garota se aproximou, com uma careta que sugeria que também estava cansada de ficar imóvel por tanto tempo. A luz iluminou seu rosto. Ela também era feia.
Seu nome era Shay. Tinha cabelo preto, comprido e preso em duas tranças. Os olhos eram separados demais. Apesar dos lábios razoavelmente grossos, ela era mais magra do que uma nova perfeita. Tinha chegado à Nova Perfeição numa expedição própria e estava escondida na margem do rio havia uma hora. – Nunca vi nada parecido – disse, baixinho. – Tem guardas e carros voadores por todo canto! – Acho que a culpa é minha – explicou Tally, envergonhada. Shay pareceu meio desconfiada. – Como assim? – Bem, eu estava na parte central da cidade, numa festa. – Entrou de penetra numa festa? Que doideira! – disse Shay, lembrando–se de baixar a voz logo em seguida. – Doido, mas muito legal. Como conseguiu entrar? – Usando uma máscara. – Caramba. Uma máscara bonita? – Ahn, na verdade, uma máscara de porco. É uma história comprida. – Uma máscara de porco. Sei. Vou tentar adivinhar: alguém botou sua casa abaixo com um sopro? – Ahn? Não, nada disso. É que eu estava para ser pega, então... disparei um alarme de incêndio. – Bela jogada! Tally sorriu. A história até que era boa, agora que podia contá–la a alguém.
– Fiquei encurralada no terraço. Aí peguei uma jaqueta de bungee jump e pulei lá de cima. Vim subindo e descendo até a metade do caminho para cá. – Fala sério! – Bem, pelo menos uma parte do caminho até aqui. – Que incrível – disse Shay, sorrindo. De repente, sua expressão ficou séria, e ela começou a roer uma unha, um dos maus hábitos que a operação costumava curar. – Mas então, Tally, você estava nessa festa... para se encontrar com alguém? Foi a vez de Tally ficar impressionada. – Como chegou a essa conclusão? Shay deu um suspiro e olhou para suas unhas destruídas. – Também tenho amigos por aqui. Quero dizer, eram amigos. Às vezes fico procurando por eles, espiando. – Ela encarou Tally. – Sempre fui a mais nova, sabe? E agora... – Está sozinha. Shay confirmou com um movimento da cabeça. – Mas parece que você fez um pouco mais do que espiar – comentou. – É. Digamos que eu dei um oi. – Ei, que loucura. Seu namorado ou algo parecido? Tally disse que não. Peris saía com outras pessoas, mas ela levava numa boa, tentava fazer a mesma coisa. A amizade sempre fora a coisa mais importante na vida dos dois. Aparentemente, não era mais.
– Se fosse meu namorado, acho que não conseguiria fazer o que fiz, você entende? Não ia querer que ele visse meu rosto. Mas, como somos amigos, achei que talvez... – Sei. E como foi? Tally parou para pensar por um instante, com o olhar perdido no movimento da água do rio. Peris tinha parecido tão perfeito e adulto. E garantira que voltariam a ser amigos. Assim que Tally ficasse perfeita também... – Para resumir, foi uma droga – disse, finalmente. – Foi o que pensei. – Menos a fuga. Essa parte foi muito bacana. – Parece que sim. – A diversão na voz de Shay era nítida. – Você foi muito esperta. – A passagem de um carro voador fez as duas se calarem por um momento. – Mas, sabe, a verdade é que ainda não estamos totalmente a salvo. Da próxima vez que for disparar um alarme de incêndio, por favor, me avise antes. – Desculpe por deixar você encurralada aqui – disse Tally. Shay franziu a testa olhando para ela. – Não é nada disso. Eu quis dizer que, se for para entrar nessa de fugir, gostaria de pelo menos me divertir também. – Ah, tudo bem – disse Tally,rindo. – Da próxima vez, eu aviso. – Por favor. – Shay observou o rio. – Parece que o caminho está mais limpo agora. Cadê sua prancha? – Minha o quê?
Shay tirou uma prancha voadora de trás de um arbusto. – Não tem uma prancha? Como chegou aqui então, nadando? – Não, eu... espera aí. Como conseguiu atravessar o rio numa prancha? Qualquer coisa que voasse atraía um monte de guardas. – É o truque mais velho do mundo – respondeu Shay, rindo. – Achei que você já soubesse. Tally deu de ombros. – Não ando muito de prancha. – Bem, esta aqui vai ter que levar nós duas. – Espere, shhh. Outro carro voador apareceu, percorrendo o rio bem na altura das pontes. Depois que tinha passado, Tally contou até dez para voltar a falar. – Acho que não é uma boa ideia voltar voando. – Então como chegou aqui? – Venha comigo. – Tally ficou de quatro e, depois de começar a engatinhar, olhou para trás. – Consegue carregar esse negócio aí? – Claro. Não é muito pesado. – Shay estalou os dedos, e a prancha passou a flutuar. – Na verdade, não pesa nada, a não ser que eu queira. – Muito conveniente.
Enquanto Shay engatinhava, a prancha a seguia, flutuando como um balão de criança. Tally, porém, não via nenhum fio segurando o brinquedo. – Para onde estamos indo? – perguntou Shay. – Conheço uma ponte. – Mas ela vai nos denunciar. – Essa não vai, não. É uma velha amiga.
CAINDO EM SI Tally caiu. De novo. Dessa vez, porém, o tombo não doeu tanto. Na mesma hora em que seus pés escorregaram da prancha, ela relaxou, exatamente como Shay tinha ensinado. Rodopiar não era muito pior do que ser balançada pelos braços quando era criança. Claro, se seu pai fosse uma criatura sobre–humana tentando arrancar seus braços. De qualquer maneira, Shay havia explicado que a energia cinética tinha de ir para algum lugar. E ficar girando era melhor do que ser lançada contra uma árvore. Ali, no Parque Cleópatra, havia muitas. Depois de alguns rodopios, Tally sentiu que estava sendo baixada até a grama, segura pelos pulsos. Tonta, mas inteira. Shay disparou para cima, inclinando a prancha até parar elegantemente, como se tivesse nascido naquela coisa. – Já está um pouco melhor. – Não me senti nem um pouco melhor. Tally tirou um dos braceletes antiqueda e esfregou o pulso. Estava ficando vermelho. Seus dedos pareciam sem força. O bracelete era pesado e duro porque continha metal. Afinal, funcionava com magnetismo, como as pranchas. Toda vez que os pés de Tally escorregavam, os braceletes flutuavam e freavam a queda, como um gigante bondoso a segurando e afastando do perigo. Pelos pulsos. De novo. Tally arrancou o outro bracelete e esfregou a pele. – Não desista. Você quase conseguiu! – gritou Shay.
Depois de voltar sozinha, a prancha de Tally parou na altura de seus tornozelos, como um cachorro arrependido. Ela cruzou os braços para esfregar os ombros. – Quase consegui ser dividida em duas, né? – disse Tally. – Impossível. Já escorreguei mais do que um copo de leite numa montanha–russa. – Numa o quê? – Esquece. Vamos lá, mais uma tentativa. Tally suspirou. Não eram só os pulsos. Os joelhos também doíam, por causa das freadas bruscas, das curvas em alta velocidade que faziam seu corpo pesar uma tonelada. Shay chamava aquilo de “alta gravidade”, um fenômeno que ocorria sempre que um objeto veloz mudava de direção. – Andar de prancha parece divertido. Poder voar como um pássaro. Mas a prática exige muito esforço – lamentou Tally. – Ser um pássaro também deve exigir muito esforço. Sabe, esse negócio de bater as asas o dia inteiro – respondeu Shay, dando de ombros. – Pode ser. Fica mais fácil com o tempo? – Para os pássaros, não sei. Em cima de uma prancha, com certeza. – Espero que fique mesmo. Tally fechou os braceletes e subiu na prancha, que balançou um pouco sob seu peso, como uma plataforma de saltos ornamentais. – Verifique o sensor na cintura – orientou Shay.
Tally tocou seu cinto, onde Shay tinha prendido um pequeno sensor que informava à prancha a posição do centro de gravidade e para que lado o passageiro estava. Analisava até os músculos do estômago, que, aliás, costumavam se contrair com a aproximação das curvas. A prancha era tão inteligente que conseguia aprender, gradualmente, como um
corpo reagia. Quanto mais Tally praticasse, mais fácil seria manter o equipamento sob seus pés. Evidentemente, Tally também tinha de aprender. Shay não parava de dizer que, se os pés não estivessem no lugar certo, nem a prancha mais inteligente do mundo poderia ajudar. A superfície era toda irregular, para gerar atrito, mas ainda assim era fácil escorregar. A prancha tinha formato oval, media metade da altura de Tally e era preta, com manchas prateadas, lembrando a pele de um leopardo – o único animal do mundo capaz de correr mais rápido do que uma prancha consegue voar. Era a primeira prancha de Shay e nunca havia sido enviada para reciclagem, Ficava pendurada na parede ao lado da sua cama. Tally estalou os dedos, dobrou os joelhos enquanto subia no ar e depois se curvou para ganhar velocidade. Shay seguia um pouco atrás dela. Em pouco tempo, estavam passando pelas árvores, que chicoteavam os braços de Tally com seus ramos afiados. A prancha não permitiria que ela batesse em objetos sólidos, mas não se preocupava com galhos. – Estique os braços. Mantenha os pés separados! – gritou Shay, pela milésima vez. Insegura, Tally botou o pé esquerdo à frente. Nos limites do parque, inclinou–se para a direita, fazendo a prancha iniciar uma longa curva. Dobrou os joelhos e sentiu a força da manobra que a levaria de volta ao ponto de partida. Agora Tally avançava na direção das bandeiras de slalom. À medida que se aproximava, ia se agachando. Podia sentir o vento ressecando seus lábios e levantando seu rabo de cavalo. – Ai, meu Deus – murmurou.
Depois de passar pela primeira bandeira, ela se curvou toda para a direita, esticando os braços para se equilibrar.
– Agora troca! – gritou Shay. Tally contorceu o corpo para mudar a direção da prancha e contornar a bandeira seguinte. Assim que a superou, repetiu a manobra. Seus pés, contudo, estavam muito próximos. De novo, não! Seus sapatos escorregaram na superfície da prancha. – Não! Ela curvou os pés e agitou os braços na tentativa de se manter sobre a prancha. O pé direito deslizou até a beirada – podia ver sua silhueta contra as árvores. As árvores! Estava quase de lado, com o corpo paralelo ao chão. Passou por mais uma bandeira e, de repente, estava terminado. A prancha voltou para baixo de Tally para corrigir a trajetória. Ela tinha feito a curva! Tally virou–se para Shay. – Eu consegui! – gritou. E então caiu. Desorientada pela virada, a prancha tentara fazer uma curva e acabou derrubando a passageira. Tally relaxou os braços para que pudessem se esticar com mais facilidade. O mundo girava ao seu redor. Ela ria durante a descida até a grama, pendurada pelos braceletes. Shay também ria. – Quase conseguiu – corrigiu. – Não, eu passei pelas bandeiras, você viu! – Tudo bem, tudo bem, você conseguiu. – Shay continuava rindo enquanto pulava na grama. – Mas não fique dançando desse jeito. Não é legal, Vesguinha.
Tally mostrou a língua. Durante a semana, aprendera que Shay só 45se chamassem pelos nomes verdadeiros na maior parte do tempo, e Tally logo se acostumou. Na verdade, preferia assim. Ninguém além de Sol e Ellie – seus pais – e alguns professores afetados a chamavam de “Tally”. – Seu desejo é uma ordem, Magrela. Foi ótimo – disse Tally, caindo na grama. Seu corpo inteiro doía, e todos os seus músculos estavam exaustos. – Obrigada pela aula. Voar é a melhor coisa que existe. Shay sentou–se perto dela. – Ninguém fica entediado numa prancha. – Não me sinto tão bem desde que... Tally não chegou a dizer o nome. Em vez disso, olhou para o céu, espetacularmente azul. Um céu perfeito. Elas tinham começado o treino já no meio da tarde. Lá em cima, algumas nuvens apresentavam tons de rosa, embora ainda faltassem algumas horas para o pôr do sol. – É isso aí – disse Shay. – Eu também não. Estava enjoada de sair sozinha. – Quanto tempo falta para você? A resposta foi imediata: – Dois meses e vinte e seis dias. – Tem certeza? – perguntou Tally, surpresa. – É claro que tenho certeza. Aos poucos, um grande sorriso tomou conta do rosto de Tally. Ela deixou o corpo cair na grama e começou a rir. – Só pode ser brincadeira. Nascemos no mesmo dia! – Não acredito.
– Pode acreditar. É ótimo: nós duas ficaremos perfeitas juntas!
Shay manteve–se em silêncio por um instante antes de responder. – É, acho que sim. – No dia nove de setembro, certo? – perguntou Tally, e Shay confirmou. – Que maneiro. Não sei se eu aguentaria perder outro amigo. Não precisamos nos preocupar com uma de nós abandonando a outra. Nem por um único dia. Shay arrumou o tronco. Seu sorriso tinha sumido. – Eu não faria isso de qualquer maneira – falou. – Não quis dizer que faria, mas... – Mas o quê? – Mas, quando você se torna perfeita, vai para Nova Perfeição. – E daí? Os perfeitos têm permissão para vir aqui. E para escrever. – Eles nunca fazem isso – disse Tally impaciente. – Eu faria – disse Shay. Ela olhou para as torres de festa no outro lado do rio e mordeu a unha do dedão. – Eu também, Shay. Eu viria aqui para ver você. – Tem certeza? – Tenho. Sério. Sem querer dar muita importância àquilo, Shay deitou de novo para observar as nuvens. – Que bom. Mas você não é a primeira pessoa a fazer esse tipo de promessa. – É, sei disso.
As duas permaneceram em silêncio por um tempo. As nuvens se moviam lentamente no céu. O ar foi ficando mais frio. Tally pensou em Peris; tentou se lembrar da aparência dele quando era conhecido apenas como Nariz. Por alguma razão, ela não conseguia mais visualizar seu rosto feio. Era como se os poucos minutos diante de sua versão perfeita tivessem apagado uma vida inteira de lembranças. Tudo que via agora era o Peris perfeito. Seus olhos, o sorriso. – Fico imaginando por que eles nunca voltam – disse Shay. – Nem para uma visita. – Porque somos feias, Magrela. Por isso.
ENCARANDO O FUTURO – Essa é a segunda opção. Tally tocou o anel de interface, e a imagem no telão mudou. A nova versão era esguia, com maçãs do rosto bem definidas, olhos verdes como os de um gato e uma grande boca que acabava num sorriso inteligente. – Essa é bem, ahn, diferente. – É mesmo. Não sei nem se seria permitida. Tally mexeu nos parâmetros do formato dos olhos, reduzindo o arco das sobrancelhas a um nível quase normal. Algumas cidades permitiam operações mais exóticas – apenas para novos perfeitos –, mas as autoridades dali eram notoriamente conservadoras. Médico nenhum consideraria aquele modelo. Ainda assim, era divertido testar os limites do software. – Acha que fiquei muito assustadora? – Não. Ficou mesmo uma gata – disse Shay, dando uma risadinha. – Infelizmente, estou falando no sentido literal: uma gata comedora de ratos. – Tudo bem, vamos continuar. A Tally seguinte baseava–se num modelo morfológico muito mais comum: olhos castanhos amendoados, cabelos pretos lisos com longas franjas e lábios escuros bem carnudos. – Meio genérico, Tally. – Ah, dá um tempo! Trabalhei muito nesse aqui. Acho que eu ficaria linda desse jeito. Tem um quê de Cleópatra.
– Quer saber de uma coisa? – disse Shay. – Andei lendo que a verdadeira Cleópatra nem era tão bonita. Ela seduzia todo mundo com sua inteligência. – Ah, tá. E você já viu alguma foto dela? – Eles não tinham câmeras naquela época, Vesguinha. – Exatamente. Então, como você sabe que ela era feia? – Porque foi isso que os antigos historiadores escreveram. Tally fez pouco caso do comentário. – Provavelmente ela era uma típica perfeita, e eles não perceberam. Naquela época, tinham conceitos estranhos a respeito de beleza. Não entendiam nada de biologia. – Sorte deles – disse Shay, desviando o olhar para a janela. – Se você acha que todos meus rostos são horríveis, por que não me mostra alguns dos seus? Tally limpou a tela e deitou–se na cama. – Não posso. – Quer dizer que pode falar, mas não quer ouvir? – Não, quero dizer que não posso mesmo. Nunca desenhei um rosto. O queixo de Tally caiu. Todo mundo fazia mortos, até as crianças, que, por serem muito novas, sequer tinham uma estrutura facial definitiva. Era um ótimo jeito de passar o dia: pensar em todos os visuais possíveis para quando você finalmente se tornasse perfeita. – Nem unzinho? – insistiu Tally. – Talvez quando era bem pequena. Mas meus amigos e eu desistimos desse tipo de coisa há muito tempo.
– Bem – disse Tally, sentando–se. – Então temos de recuperar o tempo perdido. – Prefiro andar de prancha. Ao ver Shay mexendo em algo sob a camiseta, Tally concluiu que ela dormia com o sensor de cintura, para sonhar com os voos na prancha. – Mais tarde, Shay. Não consigo acreditar que você não tenha um único morfo. Por favor. – É besteira. Os médicos acabam fazendo o que querem, não importa o que você peça. – Eu sei, mas é divertido. Mesmo revirando os olhos, Shay acabou cedendo. Desceu da cama se arrastando e parou diante da tela de parede. Tirou os cabelos da frente do rosto. – Então você já fez isso antes. – Como eu disse, foi quando eu era pequena. – Claro. Tally ligou o anel de interface para acionar um menu na tela e piscou os olhos para avançar entre as opções do mouse ocular. A câmera da tela acionou um laser verde, e logo havia um padrão quadriculado sobre o rosto de Shay, detalhando as formas de suas maçãs do rosto, nariz, lábios e testa. Em questão de segundos, dois rostos apareceram na tela. Ambos pertenciam a Shay, mas havia diferenças gritantes. Um parecia selvagem, ligeiramente nervoso; o outro tinha uma expressão distante, como a de uma pessoa que sonha acordada. – É esquisito esse esquema, não é? – disse Tally. – Como se fossem duas pessoas diferentes.
– É meio assustador – concordou Shay.
Os rostos feios eram sempre assimétricos: um lado nunca correspondia ao outro. Por isso, a primeira providência do software de criação de morfos era pegar um lado e duplicá–lo, como se fosse um espelho, para obter dois exemplos de simetria perfeita. A verdade é que as duas versões simétricas de Shay já pareciam melhores do que a original. – Então, Shay, qual você acha que é seu melhor lado? – Por que tenho de ser simétrica? Prefiro um rosto com lados diferentes. – Isso é um sinal de estresse infantil. Ninguém quer ver esse tipo de coisa. – Ah, eu não quero parecer estressada – disse Shay, com um tom de deboche, antes de apontar para o rosto mais nervoso. – Tudo bem, tanto faz. O da direita é melhor, não acha? – Odeio meu lado direito. Sempre começo com o esquerdo. – Bem, por acaso eu gosto do meu lado direito. Parece mais durão. – Sem problemas. Você é que manda. – Tally deu uma piscada, e o rosto baseado no lado direito passou a ocupar a tela inteira. – Vamos acertar o básico primeiro. O software cuidou de tudo. Os olhos foram crescendo gradualmente, fazendo o nariz diminuir, e as maçãs do rosto subiram e os lábios ficaram um pouquinho mais cheios (já tinham um tamanho quase perfeito). Todas as manchas sumiram; a pele não tinha mais falhas. Por baixo dela, os ossos se moveram sutilmente, puxando a testa para trás, deixando o queixo mais definido e a mandíbula mais firme. Ao fim, Tally assobiou. – Ei, já está muito bom.
– Ótimo – grunhiu Shay. – Estou igual a todas as outras perfeitas do mundo.
– Sim, mas vamos com calma, acabamos de começar. Que tal escolhermos o cabelo? Tally piscou várias vezes, percorrendo os menus, e escolheu um estilo aleatoriamente. Quando a tela se atualizou, Shay caiu no chão, vítima de um ataque de risos. O imenso penteado se erguia sobre sua delicada cabeça como um chapéu pontudo; os cabelos loiros quase brancos destoavam completamente da pele morena. Tally, também aos risos, mal conseguia falar. – Certo, acho que esse não serve. – Ela passou por outros estilos até escolher um básico: curto e escuro. –Vamos acertar o rosto primeiro. Nas sobrancelhas, ela fez alguns ajustes para deixá–las com um formato mais dramático. As bochechas ficaram mais cheias e redondas. Shay continuava magra demais, mesmo depois de o software aproximá–la de um modelo médio. – Que tal deixarmos você mais clara? – disse Tally, tornando o tom da pele mais suave. – Ei, Vesguinha – reagiu Shay. – De quem é o rosto mesmo? – Só estou me divertindo. Quer tentar? – Não, quero voar na minha prancha. – Claro. Mas vamos arrumar isso aqui antes. – O que quer dizer com “arrumar”, Tally? Talvez eu já ache meu rosto arrumado! – Sim, é perfeito – disse Tally, revirando os olhos. – Para uma feia. Shay ficou irritada.
– Por quê? Você não me suporta do jeito que sou? Precisa botar uma imagem na cabeça para poder me imaginar em vez de olhar para a minha cara?
– Calma, Shay, é só brincadeira. – Fazer as pessoas se sentirem feias não é nada divertido. – Mas nós somos feias! – Esse joguinho foi desenvolvido para nos fazer sentir raiva de nós mesmas. Tally resmungou e se jogou de novo na cama, fixando o olhar no teto. Às vezes, Shay conseguia ser bem estranha. Ela sempre ficava irritada quando o assunto era a operação, como se alguém a estivesse obrigando a completar 16 anos. – Claro. Até parece que as coisas eram maravilhosas quando todo mundo era feio. Ou será que você perdeu essa aula na escola? – Eu sei, eu sei. Todo mundo julgava os outros pela aparência. As pessoas mais altas conseguiam empregos melhores, e o povo votava em certos políticos só porque eles não eram tão feios quanto a maioria. Blá, blá, blá. – Isso aí. E as pessoas se matavam por coisas como uma cor de pele diferente. – Tally balançou a cabeça. Por mais que repetissem aquela história dezenas de vezes na escola, ela nunca tinha acreditado de verdade. – Então, qual é o problema de as pessoas serem mais parecidas agora? É o único jeito de tornar as pessoas iguais. – Poderiam pensar numa forma de deixá–las mais espertas. – Até parece – respondeu Tally, rindo. – De qualquer maneira, só quero ver como eu e você estaremos em apenas... dois meses e quinze dias. – Não podemos simplesmente esperar até lá? Tally fechou os olhos suspirando. – Às vezes acho que não consigo.
– Bem, que pena. – Shay também se jogou na cama e deu um cutucão no braço de Tally. – Ei, tente aproveitar ao máximo. Podemos andar de prancha agora? Por favor? Ao abrir os olhos, Tally viu um sorriso no rosto da amiga. – Está bem. Vamos voar. – Ela se sentou e reparou na tela. Mesmo sem muito esforço, o rosto de Shay parecia receptivo, delicado, saudável. perfeito. –Você não acha que ficou bonita? Sem se dar ao trabalho de olhar, Shay fez que não. – Essa aí não sou eu. É a ideia que algum comitê faz de mim. Tally sorriu e lhe deu um abraço. – Mas vai ser você. A Shay de verdade. Logo, logo.

PERFEITAMENTE ENTEDIANTE – Acho que você está pronta. Tally deslizou até parar. Pé direito abaixado, pé esquerdo levantado, joelhos dobrados. – Pronta para quê? Shay passou devagar, deixando o vento empurrá–la. Elas estavam no ponto mais alto e distante que as pranchas podiam levá–las, acima das copas das árvores, nos limites da cidade. Era incrível como Tally havia aprendido rápido a se manter no alto sem nada além de uma prancha e braceletes para evitar uma queda monumental. A vista lá de cima era espetacular. Ao fundo, as torres de Nova Perfeição erguiam–se do meio da cidade. Em torno, havia um cinturão verde, um pedaço de floresta que separava os perfeitos de meia–idade e idosos dos jovens. As gerações mais velhas viviam nos subúrbios, escondidas pelas montanhas, em casas separadas por jardins particulares em que as crianças podiam brincar. Shay sorriu: – Está preparada para um passeio noturno? – Ahn, olha, não sei se quero atravessar o rio outra vez – respondeu Tally, lembrando–se da promessa feita a Peris. Ela e Shay se divertiram muito naquelas três semanas, mas não haviam retomado a Nova Perfeição desde a noite em que se conheceram. – Antes de nos transformarmos, é claro. Depois da última vez, os guardas devem estar. – Não estou falando de Nova Perfeição – interrompeu Shay. – Aquele lugar é um saco mesmo. Teríamos de ficar escondidas a noite inteira. – Ah, então vamos só passear por Vila Feia? Ainda se deixando levar pelo vento, Shay balançou a cabeça.
– Aonde mais podemos ir? – perguntou Tally, se ajeitando sobre a prancha, meio incomodada. Shay enfiou as mãos nos bolsos e abriu os braços, transformando sua jaqueta numa vela. O vento a empurrou para mais longe. Num ato reflexo, Tally inclinou os pés, para poder acompanhá–la. – Bem, podemos ir para lá – disse Shay, apontando para uma área vasta a sua frente. – Os subúrbios? Aquilo ali é a chatolândia. – Os subúrbios, não. Depois deles. Então Shay deixou os pés escorregarem em direções opostas, até as extremidades da prancha. Sua saia aparou o vento frio da noite, o que a fez se afastar numa velocidade ainda maior. Estava seguindo para além do cinturão verde. Fora dos limites. Tally ajeitou os pés e acelerou a prancha até emparelhar com a amiga. – Do que está falando? Sair completamente da cidade? – É isso aí. – Isso é maluquice. Não há nada para lá. – Há muita coisa. Árvores de verdade, de centenas de anos. Montanhas. E as ruínas. Já foi lá? – Claro – respondeu Tally, hesitante. – Não estou falando de passeios da escola, Tally. Você já foi lá à noite? A prancha de Tally parou subitamente. As Ruínas de Ferrugem eram os restos de uma cidade antiga, uma vasta lembrança da época em que havia gente demais e todo mundo era incrivelmente idiota. E feio. – Não, de jeito nenhum. Não me diga que você já foi.
Shay confirmou. Tally ficou surpresa.
– Não acredito. – Acha que é a única pessoa que conhece truques legais? – Tudo bem, talvez eu acredite – cedeu Tally. Shay tinha aquele olhar, aquele que Tally aprendera a respeitar. – Mas e se formos pegas? – Tally, não há nada por lá. Você mesma disse. Nada e ninguém para nos pegar. – As pranchas funcionam nesse lugar? Alguma coisa funciona? – As especiais funcionam. Basta saber como alterá–Ias e por onde voar. E é fácil passar pelos subúrbios. É só seguir o rio pelo caminho todo. Mais para cima tem a água branca, forte demais para os barcos. Tally não conseguia fechar a boca. – Você realmente já fez isso. Uma rajada de vento soprou na jaqueta de Shay e a levou para longe. Ela sorria. Tally teve de botar a prancha em movimento para continuar a conversa. Sentiu a copa de uma árvore tocar seus pés. A superfície estava ficando mais alta. – Vai ser divertido – gritou Shay. – Parece muito arriscado. – Ah, dá um tempo. Quero mostrar isso a você desde que nos conhecemos. Desde que me contou que tinha entrado numa festa de perfeitos... e disparado um alarme de incêndio! Tally desejou ter contado a história toda a Shay. Que aquilo havia simplesmente acontecido. Agora Shay parecia achar que ela era a garota mais destemida do mundo. – Sabe, o negócio do alarme foi meio que um acidente. – Ah, claro que foi.
– Talvez devêssemos esperar. Só faltam dois meses agora. – Ah, isso mesmo. Mais dois meses e estaremos presas do outro lado do rio. Uma vida perfeita e entediante. – Não acho que seja entediante, Shay. – Fazer o que as pessoas esperam que você faça é sempre entediante. Não consigo pensar em nada pior do que ser obrigada a me divertir. – Eu consigo – disse Tally. – Não me divertir nunca. – Escuta, Tally, estes dois meses são nossa última chance de fazer algo realmente legal. De sermos nós mesmas. Depois que nos transformarmos, seremos novas perfeitas, perfeitas de meia–idade, perfeitas idosas. – Shay baixou os braços, e sua prancha parou. – E, finalmente, perfeitas mortas. – Melhor do que feias mortas – rebateu Tally. Shay deu de ombros e abriu a jaqueta de novo para navegar. Não faltava muito para chegarem ao fim do cinturão verde. Logo ela receberia um alerta, e a prancha começaria a falar. – Além disso – insistiu Tally –, só porque vamos passar pela cirurgia não quer dizer que não vamos mais poder fazer coisas deste tipo. – Acontece que os perfeitos nunca fazem, Tally. Nunca. Tally suspirou e curvou os pés novamente para ir atrás da amiga. – Talvez isso aconteça porque eles têm coisas melhores para fazer do que brincadeiras de criança. Talvez curtir festas na cidade seja melhor que perder tempo num monte de ruínas antigas. – Ou talvez, depois que eles quebram e esticam seus ossos até alcançar o formato ideal, depois que arrancam seu rosto e raspam a pele, depois que enfiam maçãs do rosto plásticas na sua cara para que você fique igual a todo mundo... talvez, depois disso tudo, você simplesmente não seja mais tão interessante.
As palavras de Shay fizeram Tally vacilar. Ela nunca tinha ouvido uma descrição da cirurgia como aquela. Nem na aula de biologia, quando os detalhes da operação eram relatados, a coisa parecia tão ruim. – Não é assim. Não vamos nem perceber. Passamos o tempo todo tendo sonhos perfeitos. – É, claro. De repente, uma voz invadiu a cabeça de Tally: “Atenção, área restrita.” Com o sol mais baixo, o vento estava ficando gelado. – Vamos, Shay, vamos voltar. Está quase na hora do jantar. Shay sorriu, discordando, e pegou seu anel de interface. Agora não ouviria mais os alertas. – Não, esta é a noite. Você está voando quase tão bem quanto eu. – Shay. – Venha comigo. Vou lhe mostrar uma montanha–russa. – O que é uma... “Segundo alerta. Área restrita.” Tally parou a prancha. – Se você continuar, Shay, vai acabar sendo pega e não vamos fazer nada hoje à noite. Sem dar ouvidos à amiga, Shay deixou o vento levá–la para longe. – Tally, só quero mostrar o que eu considero divertido. Antes de nos tornarmos perfeitas e termos a mesma ideia de diversão que todos os outros.
Tally não se conformava. Queria dizer que Shay já tinha lhe ensinado a voar de prancha, a coisa mais legal que aprendera na vida. Em menos de um mês, acreditava que ela e Shay eram melhores amigas. Lembrava
de quando tinha conhecido Peris, quando os dois eram crianças, e tinha percebido quase imediatamente que ficariam juntos para sempre. – Shay... – tentou uma última vez. – Por favor. – Tudo bem. Shay baixou os braços e os pés para que a prancha parasse. – Sério? Esta noite? – Sim. Ruínas de Ferrugem. Tally dizia a si mesma para relaxar. Não era nada de mais. Estava sempre violando as regras, e todo mundo visitava as ruínas uma vez por ano, nas excursões da escola. Não havia perigo ou qualquer outra ameaça. Shay voltou bem rápido, passou ao lado de Tally e botou um braço em torno da amiga. – Espere até ver o rio. – Você disse Que tem água branca? – Isso. – E o que seria exatamente? – Água – respondeu Shay, sorrindo. – Só que muito, muito mais legal.
CORREDEIRAS – Boa–noite. – Durma bem – respondeu o quarto. Tally vestiu uma jaqueta, prendeu o sensor na cintura e abriu a janela. O ar estava parado, o rio tão calmo que ela podia encontrar cada detalhe da cidade espelhada em suas águas. Parecia que os perfeitos estavam realizando algum evento. Dava para ouvir o barulho da multidão vindo do outro lado – milhares de vozes que subiam e baixavam juntas. As torres de festa estavam escuras, sob a lua quase cheia, e os fogos de artifício brilhavam em tons de azul, indo tão alto que as explosões eram silenciosas. A cidade nunca parecera tão distante. – Te vejo em breve, Peris – disse, em voz baixa. As telhas estavam úmidas por causa da chuva. Com cuidado, Tally subiu em direção à parede do dormitório que encostava numa antiga árvore. Os apoios de mão entalhados em alguns galhos eram firmes e familiares. Ela desceu rapidamente até uma área escura atrás do reciclador. Assim que saiu do terreno do dormitório, Tally olhou para trás. As sombras que se formavam no caminho eram tão convenientes que pareciam intencionais. Como se fosse esperado que os feios saíssem escondidos de vez em quando. Tally tentou tirar aquilo da cabeça. Estava começando a pensar como Shay.
Encontraram–se na represa, onde o rio se dividia em dois para contornar Nova Perfeição. Essa noite, não havia barcos para perturbar a
escuridão. Shay praticava manobras sobre a prancha quando Tally apareceu. – Acha mesmo que devia fazer isso aqui na cidade? – gritou Tally, tentando vencer o ruído da água que passava pelas comportas da represa. Shay dançava sobre a prancha, movendo seu peso para frente e para trás, desviando–se de obstáculos imaginários. – Só estou me certificando de que funciona. Para você não se preocupar. Tally olhou para sua própria prancha. Shay havia dado um jeito no comando de segurança para que não começasse a falar quando estivessem voando à noite ou quando saíssem da cidade. Para Tally, o mais importante não era saber se a prancha reclamaria, mas se poderia voar. Ou se a jogaria contra uma árvore. A prancha de Shay, no entanto, parecia estar voando normalmente. – Vim voando até aqui, e ninguém apareceu para me pegar – disse ela. Tally pôs sua prancha no chão. – Obrigada por tomar esse cuidado. Eu não queria parecer tão covarde. – Você não foi. – Fui, sim. Acho que tenho que contar uma coisa a você. Naquela noite em que nos conhecemos, eu meio que prometi ao meu amigo Peris que não me arriscaria muito. Sabe, para não me meter em nada muito sério e acabar deixando–os realmente irritados. – E quem se importa se eles vão ficar irritados? Você já tem quase 16. – E se eles ficarem irritados a ponto de não quererem mais me tornar perfeita?
Shay parou de se balançar sobre a prancha. – Nunca ouvi falar disso. – Eu também não. Mas talvez eles não nos contassem se tivesse acontecido. De qualquer maneira, Peris me fez prometer que me comportaria. – Tally, você pensou na hipótese de ele ter dito isso para que você não aparecesse de novo por lá? – Ahn? – Talvez ele tenha convencido você a se comportar para que não voltasse a incomodá–lo. Para que você tivesse medo de voltar a Nova Perfeição. Tally queria responder, mas de repente sentiu sua garganta seca. – Olha, se não quiser vir, tudo bem – prosseguiu Shay. – É sério, Vesguinha. Mas estou dizendo que não vamos ser pegas. E se formos eu assumirei toda a culpa. Vou dizer que sequestrei você. Tally subiu na prancha e estalou os dedos. Quando conseguiu ficar cara a cara com Shay, respondeu: – Eu vou. Eu disse que ia. Sorrindo, Shay segurou a mão de Tally, apertando–a por um segundo. – Que bom. Vai ser divertido. Não no estilo dos novos perfeitos... divertido de verdade. Ponha isso aqui. – O que é isso? Óculos de visão noturna? – Não. Óculos de natação. Você vai adorar a água branca. Elas chegaram às corredeiras dez minutos depois.
Tally tinha passado a vida inteira perto do rio, que, vagaroso e altivo, definia a cidade, marcando a fronteira entre dois mundos. No entanto, nunca havia percebido que, poucos quilômetros depois da represa, o grandioso feixe prateado se tornava um monstro que rugia. As águas revoltas eram realmente brancas. Quebravam sobre as rochas, passavam por canais estreitos, desfaziam–se em borrifos iluminados pela lua, dividiam–se, reagrupavam–se e caíam em caldeirões em ebulição depois de quedas acentuadas. Shay deslizava logo acima da torrente – tão perto que deixava marcas na água a cada manobra. Tally a seguia a uma distância que considerava segura, torcendo para que sua prancha modificada não a lançasse contra rochas e galhos escondidos na escuridão. De ambos os lados, a floresta era uma imensidão repleta de árvores selvagens e antigas, em nada parecidas com as sugadoras de dióxido de carbono que decoravam a cidade. As nuvens acima, banhadas pelo luar, brilhavam como um teto feito de pérolas. Sempre que Shay gritava, Tally sabia que teria de seguir a amiga por uma parede de gotas se erguendo do redemoinho abaixo. Algumas reluziam como cortinas de renda sob a luz da lua, outras surgiam inesperadamente da escuridão. Tally também se deparava com arcos de água gelada quando Shay mergulhava ou saía de lado, mas, pelo menos, aquilo servia para sinalizar as curvas à sua frente. Os primeiros minutos foram de puro terror. Mantinha os dentes cerrados com tanta força que sua mandíbula doía. Os dedos dos pés estavam curvados dentro dos novos tênis antiderrapantes; os braços e até os dedos das mãos esticados em busca de equilíbrio. Porém, gradualmente, Tally se acostumou ao escuro, ao rugido do rio e aos jorros de água gelada em seu rosto. Era o voo mais veloz, ousado e longo de sua vida. O rio seguia para o interior da floresta negra, levando seu curso sinuoso ao desconhecido.
Finalmente, Shay agitou as mãos e parou, com a parte de trás da prancha mergulhando um pouco na água. Tally subiu para evitar a marola e, com um pequeno giro, parou suavemente. – Chegamos? – Ainda não. Mas olhe só isso – disse Shay, apontando para trás. A vista deixou Tally sem fôlego. A cidade distante não passava de uma moeda reluzente no meio da escuridão; os fogos de Nova Perfeição eram luzes vagas de um azul esmaecido. Elas deviam ter subido bastante. Tally podia ver feixes de luar descendo preguiçosamente pelos morros em torno da cidade, movidos pelo vento fraco que mal empurrava as nuvens. Nunca havia saído dos limites da cidade à noite, nunca a havia visto iluminada de tão longe. Tally tirou os óculos salpicados de água e respirou fundo. O ar carregava cheiros intensos: seivas de plantas, flores selvagens e o aroma elétrico da água agitada. – Bonito, não é? – É, sim – disse Tally, cansada. – Isso é muito melhor do que bisbilhotar em Nova Perfeição. Um sorriso tomou o rosto de Shay. – Fico feliz em saber disso. Queria muito vir aqui, mas não sozinha. Você entende? Tally olhou para a floresta ao seu redor, tentando enxergar algo nos espaços negros entre as árvores. Era a natureza selvagem de verdade, onde poderia haver qualquer coisa escondida. Não era um lugar para seres humanos. Ela tremeu ao pensar na possibilidade de um dia estar sozinha ali. – E agora?
– Agora vamos andando. – Andando? Shay conduziu a prancha até a margem e desceu. – Isso. Há um veio de ferro a cerca de meio quilômetro daqui, naquela direção. Mas não há nada daqui até lá. – Do que está falando? – Tally, você não sabe que as pranchas funcionam com base em levitação magnética? É preciso que haja algum tipo de metal por perto, ou então elas não flutuam. – Entendi. Mas na cidade... – Na cidade, há uma malha de aço sob o chão, cobrindo todas as áreas. Aqui, precisamos ter cuidado. – O que acontece se a prancha não consegue flutuar? – Ela cai. E seus braceletes antiqueda também não funcionam. – Ah. Tally desceu da prancha e a botou debaixo do braço. Todos os seus músculos doíam depois da agitada viagem até ali. Era bom pisar em chão firme. As pedras transmitiam uma firmeza a suas pernas bambas, exatamente o contrário da sensação de pairar no ar. Depois de alguns minutos de caminhada, contudo, a prancha começou a ficar pesada. Quando o ruído do rio já não passava de um murmúrio repetitivo atrás das duas, a prancha parecia mais uma grande tábua de carvalho. – Nunca tinha percebido como essas coisas pesam. – Esse é o peso de uma prancha quando não está flutuando. Aqui você descobre que a cidade cria muitas ilusões sobre como as coisas realmente funcionam.
O céu estava mais nublado. No escuro, a sensação de frio era mais intensa. Tally levantou a prancha para segurá–la melhor. Imaginava se viria uma chuva. Já estava bastante molhada das corredeiras. – Eu gosto de me iludir um pouco em relação a algumas coisas. Depois de um longo caminho por entre as rochas, Shay quebrou o silêncio. – Por aqui. Há um veio natural de ferro no subsolo. Dá para sentir sua presença com os braceletes. Tally estendeu um braço e fez uma careta desconfiada. Contudo, após um minuto, sentiu uma leve puxada no punho, como um fantasma tentando tirá–Ia do lugar. A prancha começou a parecer mais leve, e logo ela e Shay já haviam subido novamente, para contornar um monte e descer na direção de um vale sombrio. De volta à prancha, Tally recuperou o fôlego necessário para fazer uma pergunta que não saía de sua cabeça: – Se as pranchas precisam de metal, como funcionam no rio? – Garimpando ouro. – Como é que é? – Os rios vêm de nascentes, que saem de dentro das montanhas. A água traz minerais de dentro da terra. Então, sempre há metais no fundo dos rios. – Entendi. Como quando as pessoas garimpavam os rios em busca de ouro. – Sim, isso mesmo. A diferença é que as pranchas preferem ferro. Tudo que brilha demais não ajuda muito a flutuar.
Tally franziu a testa. Às vezes, Shay falava de um jeito misterioso, como se citasse as letras de uma canção que ninguém conhecia. Queria perguntar sobre aquilo, mas, de repente, Shay parou e apontou para baixo. As nuvens estavam se abrindo, permitindo que a luz do luar chegasse até o fundo do vale. Torres enormes se erguiam lançando sombras recortadas de formas humanas que se tornavam óbvias contra as copas das árvores agitadas pelo vento. 
As Ruínas de Ferrugem.

Algumas janelas vazias observavam as duas, em silêncio, das paredes dos prédios gigantes. Os vidros estavam estilhaçados há muito tempo; a madeira, podre. Não havia nada além de armações metálicas, argamassa e cimento que se despedaçava sob a força da vegetação que tomava conta do local. Olhando para a escuridão das entradas sem portas, Tally sentia arrepios ao pensar em descer e dar uma espiada. As duas amigas deslizaram por entre os prédios em ruínas, mantendo a altura e o silêncio, para não perturbar os fantasmas da cidade morta. Lá embaixo, as ruas estavam repletas de latarias de carros amontoadas entre muros ameaçadores. Qualquer que tivesse sido a causa da destruição, as pessoas haviam tentado fugir. Tally lembrava da última excursão da escola às ruínas, que seus carros não eram capazes de voar. Andavam sobre rodas de borracha. Os Enferrujados foram encurralados naquelas ruas como um monte de ratos num labirinto em chamas. – Ei, Shay, tem certeza de que nossas pranchas não vão entrar em pane de repente, certo? – perguntou, em voz baixa. – Não se preocupe. Quem quer que tenha construído esta cidade adorava desperdiçar metal. Isto aqui não se chama Ruínas de Ferrugem porque foi descoberto por um cara chamado Ferrugem. Tally não tinha como discordar. Todos os prédios eram marcados por pedaços de metal que saíam de suas paredes destruídas, como ossos saltando de um animal morto há muito tempo. Ela recordou que os Enferrujados não usavam estruturas flutuantes. Cada construção pesada, bruta e enorme precisava de um esqueleto de metal que a impedisse de desabar.
E algumas eram mesmo enormes. Os Enferrujados não mantinham suas fábricas no subsolo, nem trabalhavam em casa, mas sim todos juntos, como abelhas numa colmeia. As menores ruínas ainda eram maiores que os maiores dormitórios de Vila Feia. Maiores até que a Mansão Garbo. Vistas à noite, as ruínas pareciam muito mais reais para Tally. Nas excursões da escola, os professores sempre retratavam os Enferrujados como estúpidos. Era quase impossível acreditar que as pessoas vivessem daquele jeito, queimando árvores para desocupar a terra, consumindo petróleo para gerar calor e energia, rasgando a atmosfera com suas armas. Contudo, sob a luz do luar, ela conseguia imaginar as pessoas, desviando dos carros em chamas para escapar da cidade que desmoronava, entrando em pânico durante a fuga daquele monte insustentável de metal e pedra. A voz de Shay interrompeu o devaneio de Tally. – Venha, quero mostrar uma coisa a você. Shay voou para perto dos prédios e logo estava sobre as árvores. – Tem certeza de que podemos... – começou a perguntar Tally. – Olhe para baixo – disse Shay. Lá embaixo, metal re–luzia por entre as árvores. –As ruínas são muito maiores do que nos contam. Eles mantêm uma parte da cidade de pé para as excursões escolares e atividades de museus. Mas, na verdade, ela não tem fim. – E está cheia de metal? – Sim. Toneladas. Não se preocupe, já sobrevoei o lugar inteiro. Tally engoliu em seco. Ela mantinha os olhos abertos para detectar qualquer sinal de ruínas lá embaixo e agradecia por Shay estar voando uma velocidade razoável.
Uma forma emergiu da floresta – uma espécie de espinha comprida que subia e descia como uma onda congelada. Seguia para longe de onde estavam, em direção à escuridão. – Chegamos. – Legal, mas o que é isso? – perguntou Tally. – Chama–se montanha–russa. Eu não disse que ia lhe mostrar uma? – É bonita. Para que serve? – Diversão. – Duvido. – Pode acreditar. Aparentemente, os Enferrujados sabiam se divertir. É como uma pista. Eles prendiam carros de superfície a elas e tentavam alcançar a maior velocidade possível. Subindo, descendo, dando voltas. Como andar de prancha, mas sem flutuar. E usavam um tipo de aço que não enferrujava de jeito nenhum. Acho que por segurança. Tally estava confusa. Desde sempre, só havia pensado nos Enferrujados trabalhando nas colmeias gigantes de pedra e tentando escapar naquele último e terrível dia. Nunca se divertindo. – Vamos lá – disse Shay. – Vamos andar de montanha–russa. – Como? – De prancha. – Então Shay olhou para Tally com uma expressão séria. – Mas tem de andar bem rápido. É perigoso se não se mover bem depressa. – Por quê? – Você vai ver. Shay se virou e desceu a montanha–russa, voando um pouco acima dos trilhos. Tally respirou fundo e curvou–se para a frente com vontade. Pelo menos, aquela coisa era feita de metal.
O passeio se revelou muito divertido. Era como um circuito para pranchas flutuantes que havia se materializado. Tinha curvas fechadas e inclinadas, subidas íngremes seguidas de longas descidas e até loops que deixavam Tally de cabeça para baixo, obrigando seus braceletes antiqueda a se ativarem. Era incrível que aquilo estivesse tão bem conservado. Os Enferrujados deviam realmente ter usado um material especial, como Shay dissera. Os trilhos alcançavam alturas muito maiores do que uma prancha conseguia. Na montanha–russa, Tally podia realmente voar como um pássaro. A pista terminava em uma curva bem aberta e lenta, formando um círculo até voltar ao início. O último pedaço começava com uma grande subida. – Passe essa parte bem rápido! – disse Shay, enquanto ia na frente, em alta velocidade. Tally seguiu a toda, disparando sobre os trilhos estreitos. Ao longe, podia ver as ruínas: torres negras destruídas, à frente das árvores. Atrás de tudo, um brilho prateado que talvez fosse o mar. Estava muito alto! Ao alcançar o topo, ela ouviu um grito de satisfação. Shay havia desaparecido. Tally curvou–se para acelerar um pouco mais. De repente, a prancha saiu de seus pés. Simplesmente caiu, deixando–a solta no ar. A pista havia desaparecido. Tally cerrou os punhos, na expectativa de que os braceletes entrassem em ação e a puxassem para cima pelos pulsos. Mas eles também tinham se tornado inúteis; eram apenas tiras pesadas de metal que a puxavam na direção do chão. – Shay! – gritou ela, enquanto caía na escuridão. Então Tally voltou a ver a estrutura da montanha–russa logo à frente. Só estava faltando um pequeno pedaço da pista.
Num instante, os braceletes a levantaram, e ela sentiu a superfície sólida da prancha tocando seus pés. O impulso a havia levado para o outro lado! A prancha devia ter voado junto, bem abaixo dos seus pés, durante aqueles segundos aterrorizantes de queda livre. Rapidamente, Tally percorreu a descida, até o ponto em que Shay a esperava. – Você é doida! – gritou. – Bem emocionante, hein? – Não! Por que não me disse que estava quebrada? Shay deu de ombros. – Para ficar mais divertido? – Mais divertido? – O coração de Tally batia acelerado, mas sua visão estava estranhamente nítida. Ela sentia muita raiva, alívio e... prazer. – É, talvez sim. Mas mesmo assim você me paga! Tally desceu da prancha e, com as pernas bambas, caminhou pela grama. Encontrou um pedaço de pedra grande o bastante para servir de banco e se sentou, ainda trêmula. Shay também saltou da prancha. – Ei, desculpe. – Foi horrível, Shay. Eu estava caindo. – Não foi quase nada. Só uns cinco segundos. Pelo que me lembro, você pulou de bungee jump de um prédio. Tally fuzilou Shay com os olhos. – É, pulei, mas eu sabia que não ia me espatifar. – Tudo bem. Olhe só, na primeira vez que me mostraram a montanha–russa, não me contaram que faltava um pedaço. E eu achei bem legal descobrir desse jeito. A primeira vez é sempre a melhor. Queria que você sentisse a mesma coisa.
– Você achou legal cair dali? – Hum, talvez eu tenha ficado com raiva no início. É, acho que fiquei sim – admitiu Shay, dando um sorriso. – Mas acabei superando. – Vou precisar de um tempinho para isso, Magrela. – Fique à vontade. A respiração de Tally começou a se acalmar, e o coração, aos poucos, parou de tentar sair do seu peito. Mas sua mente continuava tão aberta quanto naqueles segundos de queda livre. Ela se perguntava quem tinha encontrado a montanha–russa e quantos outros feios tinham ido até lá desde então. – Shay, quem mostrou tudo isso a você? – Amigos mais velhos. Feios, como nós, que tentam descobrir como as coisas funcionam. E como enganá–las. Tally olhou para as formas antigas e sinuosas da montanha–russa. E para as trepadeiras que subiam por sua estrutura. – Imagino há quanto tempo os feios vêm aqui. – Provavelmente há muito tempo. As coisas são passadas adiante. Sabe, uma pessoa descobre como enganar a prancha, a outra descobre as corredeiras, e a outra chega até as ruínas. – E aí alguém toma coragem para atravessar o buraco da montanha–russa. – Tally engoliu em seco. – Ou passa por ele sem querer. – Mas, no fim, todos se tornam perfeitos. – Final feliz – completou Tally, e viu Shay contrair os ombros. – E como você sabe que essa coisa se chama “montanha–russa”? Procurou em algum lugar? – Não. Uma pessoa me contou. – Mas como essa pessoa sabia?
– É um cara. Ele sabe de muita coisa. Truques, histórias sobre as ruínas. Ele é bem legal. Algo na voz de Shay levou Tally a se virar e a segurar sua mão. – Mas imagino que agora ele seja perfeito – falou. Shay se afastou e roeu uma unha. – Não, não é. – Ué, pensei que todos seus amigos... – Tally, me promete uma coisa? Uma promessa de verdade? – Acho que sim. Que tipo de promessa? – Não pode contar a ninguém, nunca, o que vou mostrar a você. – Desde que não haja nenhuma queda livre envolvida... – Não. – Tudo bem, eu prometo. – Tally levantou a mão que levava a cicatriz feita por ela e Peris. – Nunca contarei a ninguém. Shay examinou os olhos da amiga por um instante, com atenção, até se convencer. – Certo. Quero que conheça uma pessoa. Hoje. – Hoje? Mas não vamos estar de volta antes de... – Ele não está na cidade – disse Shay, sorrindo. – Está aqui.


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