segunda-feira, 4 de março de 2013

Feios²


À ESPERA DE DAVID – É uma brincadeira, não é? Shay não respondeu. As duas tinham voltado ao coração das ruínas. Estavam na sombra do maior prédio do lugar. Ela olhava para cima com uma cara de dúvida. – Acho que lembro como se faz – disse. – Como se faz o quê? – perguntou Tally. – Como se faz para subir. É, é isso mesmo. Segurando a prancha à sua frente, Shay se abaixou para passar por um buraco na parede. – Shay? – Não fique preocupada. Eu já fiz isso. – Shay, acho que uma iniciação já é o suficiente por esta noite. Tally não estava a fim de ser vítima de outra brincadeira de Shay. Estava cansada, e a viagem de volta para casa seria longa. Para piorar, tinha tarefas de limpeza no dormitório. Só porque era verão não significava que ela podia passar o dia inteiro dormindo. Apesar de tudo, Tally foi atrás de Shay, pelo buraco. Discutir provavelmente levaria mais tempo. Elas começaram a subir com as pranchas, usando o metal da estrutura do prédio. Era estranho estar lá dentro, observando, pelas janelas, as formas destruídas das outras construções. Sentia–se como o fantasma de um Enferrujado assistindo à desintegração da cidade ao longo dos séculos.
Como não havia telhado, elas se depararam com uma vista espetacular. As nuvens tinham sumido, e o luar dava uma nitidez incrível às ruínas. Os prédios lembravam fileiras de dentes quebrados. Tally notou que era realmente o oceano o que havia visto de relance da montanha–russa. Dali de cima, a água cintilava como uma faixa prateada. Shay tirou um objeto da bolsa e o partiu ao meio. O mundo pareceu pegar fogo. – Ei! Está querendo me cegar? – gritou Tally, protegendo os olhos. – Ah, desculpa. Shay esticou o braço, afastando o sinalizador, que continuava estalando em meio ao silêncio das ruínas. O brilho lançava sombras tremidas no interior do prédio. Sob o clarão, o rosto de Shay tinha um aspecto monstruoso. As fagulhas desciam lentamente até se perderem nas profundezas da construção destruída. Finalmente as faíscas do sinalizador acabaram. Tally piscou os olhos na tentativa de apagar as manchas em sua visão. Não via praticamente nada além da lua no céu. Ela ficou tensa ao se dar conta de que o sinalizador poderia ter sido visto de qualquer ponto do vale. Ou mesmo do mar. – Shay, você mandou um sinal? – É isso aí. Tally olhou para baixo. Os edifícios sombrios estavam manchados de pontos de luz, ecos do sinalizador gravados –m seus olhos. De repente, consciente do quanto estava cega, Tally sentiu uma gota de suor descendo por suas costas. – E quem vamos encontrar? – O nome dele é David.
– David? Que nome esquisito. – Para Tally, parecia um nome inventado. Ela achou que fosse mais uma brincadeira. – Quer dizer que ele vai simplesmente aparecer aqui? Esse cara não mora mesmo nas ruínas, mora? – Não. Mora bem longe. Mas talvez esteja por perto. Às vezes ele vem aqui. – Está dizendo que ele é de outra cidade? Shay virou–se para ela, mas, no escuro, Tally não pôde interpretar sua expressão. – Mais ou menos isso – respondeu a amiga. Novamente concentrada no horizonte, Shay parecia procurar uma resposta ao seu sinal. Tally se encolhia dentro da jaqueta para se proteger. Parada, percebeu que fazia muito frio. Tentou adivinhar que horas seriam. Sem o anel de interface, não havia como perguntar. Das aulas de astronomia, Tally lembrou que, como a lua quase cheia já começava a baixar, devia passar da meia–noite. Aquele era um lado interessante de estar fora da cidade: todas as coisas sobre natureza que eram ensinadas na escola pareciam bem mais úteis. Agora recordava como a água da chuva caía nas montanhas e penetrava o solo antes de ressurgir cheia de minerais. Depois voltava ao mar abrindo rios e vales ao longo dos séculos. Quem vivesse ali poderia passear sobre pranchas, seguindo o trajeto dos rios, como nos tempos ancestrais anteriores aos Enferrujados, quando os “nem–tão–loucos” Pré–Enferrujados viajavam a bordo de pequenos barcos feitos de troncos de árvore. Aos poucos Tally recobrou a visão noturna. Ela observou o horizonte: haveria mesmo outro sinal em resposta ao de Shay? Tally torcia para que não acontecesse. Nunca havia conhecido alguém de outra cidade. Sabia, das lições da escola, que em algumas cidades as pessoas falavam línguas diferentes, não se tornavam perfeitas antes dos 18 anos e tinham outros hábitos estranhos.
– Shay, talvez seja melhor voltarmos para casa.
– Vamos esperar mais um pouco. Tally mordeu os lábios. – Quem sabe esse tal de David não esteja por aqui hoje? – É, pode ser. Provavelmente. Mas eu esperava que estivesse por aqui. – Ela se virou para Tally. – Seria muito legal se você pudesse conhecê–lo. Ele é... diferente. – Deve ser. – Não estou inventando nada disso, está bem? – Ei, acredito em você – garantiu Tally, embora nunca tivesse certeza quando se tratava de Shay. Shay voltou a mirar o horizonte enquanto roía as unhas. – É, acho que ele não está por aqui. Se quiser, podemos ir embora. – É que está muito tarde, e a volta vai ser longa. E tenho serviço de limpeza amanhã. – Eu também. – Obrigada por me mostrar tudo isso, Shay. Foi tudo incrível. Mas acho que mais uma novidade acabaria me matando. Shay deu uma risada. – A montanha–russa não matou você. – Quase. – Já me perdoou? – Depois respondo, Magrela. – Tudo bem. Só se lembre de não contar sobre David a ninguém. – Ei, eu já prometi. Pode confiar em mim, Shay. Sério.
– Certo. Eu confio, Tally – disse Shay, dobrando os joelhos para fazer a prancha iniciar a descida. Tally deu uma última olhada ao redor para admirar as ruínas que se espalhavam abaixo, as árvores escuras, o rio reluzente que se estendia rumo ao mar iluminado. Imaginou se haveria realmente alguém naquele lugar ou se David não passaria de um personagem criado pelos feios para assustarem uns aos outros. A verdade era que Shay não demonstrava qualquer medo. Aparentava estar sinceramente decepcionada com a ausência de resposta ao seu sinal, como se encontrar David pudesse ser melhor do que mostrar as corredeiras, as ruínas, a montanha–russa. Existindo ou não, pensou Tally, David era bastante real para Shay. Elas saíram pelo mesmo buraco na parede e voaram até o limite das ruínas. Depois, seguiram pelo veio de ferro até deixarem o vale. No morro, as pranchas começaram a falhar, e as duas desceram. Por mais cansada que estivesse, agora Tally não achava mais um desafio carregar a prancha. Aquilo não era mais como um brinquedo, um balão de criança; havia se tornado algo sólido, que seguia suas próprias regras e que podia ser muito perigoso. Tally também concluiu que Shay estava certa a respeito de uma coisa: não sair da cidade, de certa forma, transformava tudo numa farsa. Como os prédios e pontes suspensos por estruturas flutuantes, ou como pular de um terraço com uma jaqueta de bungee jump, nada parecia de fato real. Estava feliz por Shay tê–la levado às ruínas. No mínimo, o caos deixado pelos Enferrujados provava que as coisas podiam acabar terrivelmente mal quando não se tinha cuidado. Perto do rio, as pranchas voltaram a ficar leves e as duas subiram a bordo, agradecidas.
– Não sei quanto a você, mas não vou dar mais um único passo esta noite – disse Shay, quase num gemido. – Nem eu. Shay curvou–se para a frente e levou a prancha para o rio enquanto fechava bem a jaqueta para se proteger dos borrifos das corredeiras, Tally virou–se para dar uma última olhada. Sem as nuvens para atrapalhar, era possível ver as ruínas dali. Surpresa, Tally piscou os olhos. Achava ter visto uma centelha minúscula vinda do local da montanha–russa. Talvez fosse apenas uma ilusão de ótica, um reflexo do luar sobre algum pedaço exposto de metal. – Shay? – chamou, em voz baixa. – Você vem ou não? – gritou Shay, por sobre o bramir das águas do rio. Tally piscou de novo, mas não conseguia mais ver o brilho. De qualquer maneira, elas já estavam longe demais. Avisar a Shay apenas a faria querer voltar. E não havia a menor chance de Tally encarar a subida novamente. Provavelmente não tinha sido nada. Tally respirou fundo e berrou: – Vamos lá, Magrela. Aposto que chego primeiro! Ela avançou com a prancha, raspando a água gelada do rio, deixando por um instante uma Shay sorridente para trás.
BRIGA – Olhe para eles. Que idiotas. – Será que já nos parecemos com essas pessoas? – Provavelmente. Mas só porque já fomos idiotas não significa que eles não sejam. Tally assentiu, tentando se recordar de como era ter 12 anos, de suas impressões sobre o dormitório no primeiro dia. Lembrava que o prédio era assustador. Muito maior que a casa de Sol e Ellie, obviamente, e maior do que as cabanas em que as crianças estudavam – um professor para cada dez alunos. Agora o dormitório era apertado e claustrofóbico, exageradamente infantil com suas cores vivas e escadas protegidas. Entediante durante o dia e fácil de fugir à noite. Os novos feios permaneciam reunidos num grupo, com medo de se afastar demais do guia. Seus pequenos rostos feios examinavam o dormitório de quatro andares; seus olhos estavam tomados pela admiração e pelo medo. Shay botou a cabeça para dentro. – Isso vai ser muito divertido. – Será um programa de adaptação do qual eles nunca vão se esquecer.
O verão acabaria em duas semanas. A quantidade de gente no dormitório de Tally havia caído continuamente durante o no à medida que os veteranos completavam 16 anos. Estava quase na hora de uma
nova turma ocupar seus lugares. Tally observou os últimos feios entrarem, sem jeito e nervosos, desarrumados e fora de ordem. A idade de 12 anos marcava o momento da mudança, quando se passava de uma criança bonitinha a um feio grandalhão e sem educação. Deixar aquela fase da vida para trás lhe dava alegria. – Tem certeza de que isso vai funcionar? – perguntou Shay. Tally sorriu: não era comum Shay bancar a cuidadosa. Ela apontou para a gola da jaqueta de bungee jump. – Está vendo a luzinha verde? Significa que está funcionando. É para emergências, por isso está sempre pronta para entrar em ação. Shay enfiou a mão por baixo da jaqueta para ajeitar o sensor de cintura, o que mostrava que estava nervosa. – E se essa coisa perceber que não é uma emergência de verdade? – Ela não é tão esperta. Quando alguém cai, ela segura. Muito simples. Sem parecer estar convencida, Shay vestiu a jaqueta. Elas pegaram o equipamento na escola de artes, que ocupava o prédio mais alto de Vila Peia. Era uma unidade reserva, guardada no subsolo. Sequer tinham precisado enganar a prateleira para pegá–la. Tally não queria ser flagrada mexendo com alarmes de incêndio, já que os guardas poderiam ligá–la a um certo incidente ocorrido em Nova Perfeição no início do verão. Shay vestiu uma camiseta gigante por cima da jaqueta. Tinha as cores de seu dormitório, e nenhum dos professores conhecia seu rosto muito bem. – Como ficou? – Como se você tivesse engordado. Já estava na hora, hein?
Shay fez uma cara feia. Odiava ser chamada de bicho–pau ou de olho de porco ou de qualquer outro dos nomes que os feios costumavam usar. Às vezes, ela dizia não se importar com a operação. Evidentemente, não passava de bobagem. Shay não era uma aberração, mas também não podia ser considerada uma perfeita de nascença. Na verdade, só existiram umas dez pessoas que se encaixavam nessa definição. – Quer cuidar da parte do salto, Vesguinha? – Shay, já passei por isso antes mesmo de conhecer você. E foi você que teve essa ideia brilhante. Um sorriso tomou conta do rosto de Shay. – É uma ideia brilhante mesmo, não é? – Eles nunca vão saber o que aconteceu. Shay e Tally esperaram os novos feios chegarem à biblioteca e se espalharem ao redor de mesas para assistir a um vídeo de introdução. Elas estavam de bruços no último andar de estantes, onde eram guardados os antigos e empoeirados livros de papel, e observavam tudo de trás de uma cerca de segurança. Esperaram o guia fazer com que os feios parassem de tagarelar. – Eu diria que isso parece fácil demais – disse Shay, desenhando um par de grossas sobrancelhas pretas por cima das suas originais. – Fácil para você. Vai estar fora daqui antes que alguém consiga entender o que houve. Já eu tenho que percorrer o caminho todo até lá embaixo. – E daí, Tally? O que eles podem fazer se formos pegas? – Tem razão.
Mesmo assim, ela vestiu a peruca castanha. Durante o verão, à medida que os últimos veteranos completavam 16 anos e se tornavam perfeitos, as brincadeiras haviam se tornado mais sérias. Apesar disso, ninguém parecia ser punido. E a promessa de Tally a Peris parecia muito distante. Assim que virasse uma perfeita, nada do que havia feito no último mês importaria. Estava ansiosa para deixar aquilo tudo para trás, mas não sem um final adequado. Ainda pensando em Peris, Tally botou um grande nariz de plástico no rosto. Na noite anterior, as duas tinham invadido a sala de teatro do dormitório de Shay e agora estavam cheias de disfarces. – Está pronta? – perguntou Tally, rindo do som anasalado de sua voz, causado pelo nariz de mentira. – Espere um pouco – disse Shay, antes de pegar um livro grosso da prateleira. – Certo, hora do show. As duas se levantaram. – Me dá esse livro! – gritou Tally. – Ele é meu! Ela notou os feios ficando em silêncio e teve de controlar a vontade de olhar para baixo para ver seus rostos virados para cima. – Nada disso, Nariz de Porco! Eu o vi primeiro. – Que palhaçada, Gordinha. Você nem sabe ler! – Ah, é? Então tente ler isso! Shay atirou o livro em Tally, que se agachou. Esta, então, agarrou o livro e devolveu o golpe, acertando com força os antebraços levantados de Shay, que rolou para trás, sobre o corrimão. Tally se curvou e de olhos arregalados acompanhou Shay caindo rumo ao chão do salão principal da biblioteca, três andares abaixo. Os novos feios gritaram juntos enquanto se espalhavam para sair do caminho do corpo que se agitava mergulhando em sua direção.
Um segundo depois, o bungee jump se acionou, e Shay foi suspensa no ar. Ria de um jeito ensandecido, com toda vontade. Tally esperou mais um pouco, vendo o horror dos feios se transformar em confusão, ao mesmo tempo em que Shay pousava sobre uma mesa e saía correndo para a porta. Tally largou o livro e disparou na direção das escadas, pulando lances inteiros de uma vez, até alcançar a saída dos fundos do dormitório. – Caramba, isso foi incrível! – Você viu a cara deles? – Na verdade, não – respondeu Shay. – Estava meio ocupada vendo o chão se aproximar de mim. – É, lembro dessa sensação, de quando pulei do terraço. Ela realmente prende sua atenção. – Por falar em cara, adorei o nariz. Tally deu um risinho e tirou o nariz do rosto. – Opa, não há razão para ficar mais feia do que o normal. A expressão de Shay mudou. Ela apagou uma das sobrancelhas falsas e encarou a amiga com seriedade. – Você não é feia. – Ah, Shay, não comece. – Não, é sério, é o que eu acho. – Ela esticou o braço e tocou o nariz verdadeiro de Tally. – Seu perfil é lindo.
– Não comece a agir desse jeito esquisito, Shay. Eu sou uma feia, e você é uma feia. Continuaremos sendo por mais duas semanas. Não é
nada de mais. – Deu uma risada. – Você, por exemplo, tem uma sobrancelha gigante e outra pequenininha. Shay desviou o olhar e, em silêncio, tirou o resto do disfarce. Estavam escondidas no vestiário ao lado da praia, onde haviam deixado seus anéis de interface e mudas de roupa. Se alguém perguntasse, diriam que tinham passado o tempo todo nadando. A natação era sempre uma boa artimanha. Atrapalhava a leitura da temperatura corporal, exigia mudança de roupa e era a desculpa perfeita para não usar o anel de interface. O rio apagava todos os sinais de crime. Num instante, elas pularam na água, afundando os disfarces. A jaqueta voltaria para o subsolo da escola de arte à noite. – É sério mesmo, Tally – disse Shay, quando as duas já estavam na água. – Seu nariz não é feio. E também gosto dos seus olhos. – Meus olhos? Agora você ficou maluca de vez. Eles são muito próximos. – Quem disse isso? – A biologia. Shay jogou água na cara da amiga. – Você não acredita nessa besteira de verdade, acredita? Que só há uma aparência certa, e que todo mundo é programado para concordar com ela? – Shay, não é uma questão de acreditar. A gente simplesmente sabe. Você já viu os perfeitos. Eles são... maravilhosos. – Eles são todos iguais.
– Eu também achava isso. Mas, quando eu e Peris íamos até a cidade, víamos vários perfeitos. Acabamos percebendo que eles são diferentes.
Têm suas próprias características. Só que mais sutis, porque eles não são um bando de esquisitos. – Não somos esquisitas, Tally. Somos normais. Talvez não sejamos maravilhosas, mas pelo menos também não somos umas bonecas Barbie. – Bonecas o quê? Shay desviou o olhar. – É uma coisa que David me contou – respondeu. – Ah, que legal. David de novo. Tally pegou um impulso e boiou de costas para longe, observando o céu e desejando que aquela conversa acabasse. Elas tinham ido às ruínas mais algumas vezes. Shay sempre insistia em disparar um sinalizador, mas David nunca aparecia. Aquela história toda de esperar numa cidade fantasma por um cara que não parecia existir dava arrepios em Tally. Era divertido explorar o lugar, mas a obsessão de Shay por David havia começado a tirar a graça da coisa. – Ele existe. Já estive com ele mais de uma vez. – Tudo bem, Shay, David existe. E ser feio também existe. Não dá para mudar isso fazendo um desejo ou repetindo que você é perfeita. Aliás, essa é a razão de terem inventado a operação. – Não passa de enganação, Tally. Em toda a vida, você só viu rostos perfeitos. Seus pais, seus professores, todos que têm mais de 16 anos. Mas você não nasceu esperando encontrar sempre esse tipo de beleza em todo mundo. Simplesmente foi programada para achar que qualquer coisa diferente é feia.
– Não é ser programada. É apenas uma reação natural. E, mais importante ainda, é justo. Antigamente, tudo era aleatório, Havia algumas pessoas meio bonitas, e a maioria estava condenada a ser feia
pela vida inteira. Agora todos são feios... até se tornarem perfeitos. Ninguém sai perdendo. Shay permaneceu em silêncio por um tempo antes de falar. – Há pessoas que saem perdendo, Tally. Um arrepio percorreu o corpo de Tally. Todo mundo sabia dos feios eternos – as poucas pessoas nas quais a operação não funcionava. Não eram vistos com frequência. Eles podiam andar nas ruas, mas a maioria preferia se esconder. E quem não preferiria? Os feios podiam parecer esquisitos, mas pelo menos eram jovens. Os feios velhos eram algo realmente inacreditável. – Então é isso? Está com medo de que a operação não funcione? Que bobagem, Shay. Você não é uma aberração. Em duas semanas, estará perfeita, como todas as outras pessoas. – Eu não quero ser perfeita – disse Shay. Tally suspirou. Aquela história de novo. – Estou de saco cheio desta cidade. De saco cheio das regras e dos limites. A última coisa que quero na vida é me tornar uma nova perfeita cabeça de vento, que passa o dia inteiro festejando. – Espera aí, Shay. Eles fazem as mesmas coisas que nós: bungee jump, voos de prancha, fogos de artifício. Só que não precisam ficar se escondendo. – Eles não têm a imaginação para se esconder. – Olha, Magrela, concordo com você – disse Tally, num tom enfático. – Fazer brincadeiras é ótimo! Está bem? Quebrar as regras é muito divertido! Mas, em algum momento, você precisa fazer algo além de ser uma jovem feia metida a esperta. – Tipo, ser uma perfeita sem graça e entediante?
– Não. Tipo, ser uma adulta. Já pensou na possibilidade de que, quando você for perfeita, talvez não precise aprontar e armar confusões? Talvez os feios sempre estejam brigando ou se provocando
exatamente porque são feios. Porque não estão satisfeitos com o que são. Bem, eu quero ser feliz, e ter a aparência de uma pessoa de verdade é o primeiro passo. – Tally, eu não tenho medo de parecer com o que sou. – Pode ser. Mas tem medo de crescer! Shay não respondeu. Tally continuou boiando, em silêncio, olhando para o céu, quase sem conseguir enxergar as nuvens em meio a raiva. Ela queria se tornar perfeita, queria voltar a ver Peris. Parecia uma eternidade desde que havia conversado com ele, ou qualquer outra pessoa além de Shay, pela última vez. Estava de saco cheio daquela história de feiura; só queria que chegasse ao fim. No instante seguinte, ouviu Shay nadando em direção à praia.
ÚLTIMA DIVERSÃO Era uma sensação estranha, mas Tally não conseguia evitar uma certa tristeza. Sabia que sentiria falta da vista daquela janela. Tinha passado os últimos quatro anos observando Nova Perfeição, desejando com todas as forças atravessar o rio e nunca mais voltar. Aquela provavelmente havia sido a motivação para sair tantas vezes pela janela, aprender os truques necessários para chegar mais perto dos perfeitos, espiar a vida que um dia seria a sua. Entretanto, agora que faltava apenas uma semana para a operação, o tempo parecia estar passando rápido demais. Por vezes, Tally desejava que a cirurgia pudesse ser feita gradualmente. Primeiro, corrigir seus olhos estrábicos, depois os lábios... superar aquilo em etapas. Não queria ser obrigada a olhar uma última vez pela janela sabendo que nunca mais teria aquela vista. Sem Shay por perto, as coisas pareciam incompletas. Ela havia passado mais tempo ali, sentada na cama, contemplando Nova Perfeição.
Era verdade que não tinha muitas opções. Todos no dormitório eram mais jovens, e ela já tinha ensinado seus melhores truques para a nova turma. Tinha assistido a todos os filmes que o telão conhecia umas dez vezes, até alguns em preto e branco, num inglês que mal conseguia entender. Não havia companhia para ir a shows, e as competições esportivas do dormitório eram uma chatice sem pessoas conhecidas nas equipes. Os outros feios a olhavam com inveja, mas era inútil fazer
amigos. Provavelmente era melhor resolver logo a questão da operação. Muitas vezes, torcia para que os médicos simplesmente a sequestrassem no meio da noite e cuidassem de tudo. Ela podia imaginar várias coisas piores do que acordar um dia e se descobrir perfeita. Na escola, diziam que já era possível realizar a operação em jovens de 15 anos. Esperar até os 16 era apenas uma tradição antiga estúpida. Contudo, era uma tradição que ninguém questionava, à exceção de um ou outro feio. Assim, Tally tinha mais uma semana para encarar, sozinha. Não conversava com Shay desde a grande briga. Tally tinha tentado escrever uma mensagem, mas aquele negócio de explicar as coisas pelo telão só a havia deixado irritada novamente. E não fazia sentido resolver a situação agora. Depois que ambas se tornassem perfeitas, não haveria mais razão para brigar. E, mesmo que Shay ainda a odiasse, poderia contar com Peris e todos seus antigos amigos, à espera do outro lado do rio, com seus olhos grandes e sorrisos encantadores. Apesar disso, Tally continuava imaginando como a Shay ficaria quando perfeita, com seu corpo magricelo mais cheio, os lábios já carnudos retocados, e as unhas roídas enterradas no passado. Provavelmente dariam a seus olhos uma tonalidade mais intensa de verde. Ou uma das novas cores: roxo, prata, ouro. – Ei, Vesguinha! As palavras sussurradas quase mataram Tally de susto. Ela olhou para a escuridão do lado de fora e viu um vulto se aproximando pelo telhado. Um sorriso tomou seu rosto. – Shay! –A silhueta parou por um momento. Tally nem se preocupou em falar baixo. – Não fique parada aí. Entre, sua anta! Shay se arrastou para dentro, rindo, e Tally a recebeu com um abraço forte, caloroso e emocionado. Em seguida, as duas me afastaram, sem soltar as mãos. Por um instante, o rosto feio de Shay parecia perfeito.
– É tão bom ver você. – Você também, Tally. – Senti sua falta. Eu queria... sinto muito... – Nada disso – interrompeu Shay. – Você estava certa. Aquilo me fez pensar. Queria escrever, mas era tudo... Tally apenas assentiu, apertando as mãos de Shay. – É. Foi muito chato. As duas permaneceram de pé por um tempo; Tally olhava pela janela atrás da amiga. De repente, a vista de Nova Perfeição já não parecia tão triste. Mais uma vez, era uma paisagem luminosa e tentadora, como se toda a hesitação tivesse sido arrancada de dentro dela. A janela aberta tinha voltado a ser empolgante. – Shay? – O que foi? – Vamos a algum lugar hoje. Aprontar alguma coisa grande. – Estava torcendo para que você fizesse uma proposta desse tipo – disse Shay, rindo. Tally reparou no visual de Shay. Ela estava pronta para uma missão: roupas pretas, cabelo preso, mochila no ombro. E um sorrisinho malicioso. – Você já tem um plano, não é? Ótimo. – É – respondeu Shay. – Tenho um plano, sim. Ela foi até a cama de Tally e tirou a mochila do ombro. Seus passos faziam um chiado no chão; Tally sorriu ao notar que Shay usava tênis com solado aderente. Não andava de prancha havia alguns dias. Afinal, voar sozinha exigia o mesmo trabalho, com apenas metade da diversão.
Shay esvaziou a mochila sobre a cama e apontou.
– Localizador. Acendedor de fogo. Purificador de água. – Mostrou dois rolinhos reluzentes do tamanho de sanduíches. – Estes aqui se transformam em sacos de dormir. É bem quentinho lá dentro. – Sacos de dormir? Purificador de água? – repetiu Tally, surpresa. – Essa deve ser uma superaventura de mais de um dia. Vamos até o mar ou algo parecido? Com a cabeça, Shay fez que não. – Mais longe. – Ah, legal. – Tally manteve o sorriso no rosto. – Mas só temos seis dias até a operação. – Sei disso. – Shay abriu um saco à prova d'água e também espalhou seu conteúdo. – Comida para duas semanas. Desidratada. É só jogar um negócio desse no purificador e botar água. Qualquer tipo de água. – Uma risadinha. – O purificador é tão eficiente que podemos usar até xixi. Tally se sentou na cama para ler os rótulos nos pacotes de comida. – Duas semanas? – Duas semanas para duas pessoas – explicou Shay. – Quatro semanas para uma só. Nenhuma resposta. De uma hora para outra, Tally não conseguia mais olhar para as coisas na cama ou para Shay. Então olhou pela janela, para Nova Perfeição, onde os fogos de artifício estavam começando. – Mas não precisamos de duas semanas, Tally. Fica perto. Uma coluna vermelha subiu do meio da cidade e, dela, cascatas de fogos de artifício desciam como as folhas de um salgueiro gigante. – Não precisamos de duas semanas para o quê?
– Para ir até onde David mora – disse Shay. Tally assentiu e fechou os olhos. – Lá não é como aqui, Tally. Eles não separam as pessoas, feios e
perfeitos, jovens, adultos e velhos. E você pode ir embora na hora que quiser, ir aonde quiser. – Por exemplo? – Qualquer lugar. As ruínas, a floresta, o mar. E... você não é obrigada a fazer a operação. – Não é o quê? Shay se sentou ao lado da amiga e tocou seu rosto com um dedo. Tally abriu os olhos. – Não temos de nos parecer com todo mundo e agir como todo mundo. Temos uma escolha. Podemos envelhecer do jeito que quisermos. Para Tally, era quase impossível falar, mas ela sabia que precisava dizer algo. Forçou as palavras a saírem de sua garganta seca. – Não nos tornarmos perfeitas? Que maluquice, Shay. Sempre que você falava desse jeito, eu achava que era apenas provocação. Peris dizia as mesmas coisas. – Era apenas provocação. Mas, quando você disse que eu estava com medo de crescer, me fez pensar para valer. – Eu fiz você pensar? – Sim, me fez perceber como eu era idiota. Tally, tenho de contar outro segredo a você. Tally suspirou. – Tudo bem. Acho que não pode ficar pior. – Você se lembra dos meus amigos mais antigos, aqueles com quem eu costumava sair antes de conhecer você? Nem todos se tornaram perfeitos. – O que isso quer dizer?
– Alguns deles fugiram, como eu. Como quero que nós duas façamos. Tally examinou os olhos de Shay à procura de algum sinal indicando que aquilo fosse uma brincadeira. Mas a intensidade de seu rosto não se abalava. Ela falava muito sério. – Você conhece alguém que realmente fugiu? Shay fez que sim. – Eu devia ter ido junto. Havíamos planejado tudo, mais ou menos uma semana antes de o primeiro de nós completar 16 anos. Já havíamos roubado equipamento de sobrevivência e avisado a David que iríamos. Estava tudo preparado. Isso foi há quatro meses. – Mas vocês não... – Alguns foram. Eu não tive coragem. –Shay olhou pela janela. – E não fui a única. Outros ficaram e se tornaram perfeitos. Provavelmente, eu também me tornaria, se não tivesse conhecido você. – Eu? – De repente, não estava mais sozinha. Não tinha mais medo de voltar às ruínas, de procurar David novamente. – Mas nunca... – Tally se tocou. – Você conseguiu encontrá–lo, não foi? – Não até dois dias atrás. Tenho saído todas as noites desde que nós... desde a nossa briga. Depois de ouvir que eu tinha medo de crescer, percebi que você estava certa. Eu tive medo uma vez, mas não precisava ter de novo. – Shay pegou a mão de Tally e esperou até que seus olhos se encontrassem. – Quero que venha comigo, Tally. – Não – respondeu Tally imediatamente. Em seguida, balançou a cabeça, de um lado para o outro. – Espera aí. Por que nunca me contou nada disso? – Eu queria. Mas você me acharia uma louca.
– Você é louca! – Talvez. Só que não nesse sentido. Era por isso que queria que conhecesse David. Para que tivesse certeza de que tudo isso é real. – Não parece nada real. Para começar, que lugar é esse de que está falando? – É conhecido apenas como Fumaça. Não é uma cidade, e não há ninguém no comando. E ninguém lá é perfeito. – Parece um lixo. E como se chega lá? Andando? Shay deu uma risada. – Não consegue imaginar? Com as pranchas, como sempre. Existem pranchas de longa distância recarregáveis com energia solar. E o caminho todo foi planejado para acompanhar os rios e coisas do tipo. David o percorre o tempo inteiro, até as ruínas. Ele vai nos levar à Fumaça. – E como as pessoas vivem nesse lugar, Shay? Como os Enferrujados? Queimando árvores para se aquecer e enterrando lixo por toda parte? É errado viver no meio da natureza, a não ser que se queira viver como um animal. – Tally, isso é conversa de escola – disse Shay, cansada. – Eles têm tecnologia. E não são como os Enferrujados. Não queimam árvores. Eles não têm um muro os separando da natureza. – E todos são feios. – O que significa que ninguém é feio. O comentário conseguiu arrancar um riso de Tally. – O que significa que ninguém é perfeito. As duas ficaram em silêncio. Tally observava os fogos de artifício, sentindo–se mil vezes pior do que antes de Shay aparecer na janela.
Finalmente, Shay disse o que não saía da cabeça de Tally. – Vou perder você, não vou? – É você que está fugindo. Shay pôs as mãos nos joelhos. – A culpa é minha mesmo. Eu devia ter contado antes. Se tivesse mais tempo para se acostumar à ideia, talvez... – Shay, eu nunca me acostumaria à ideia. Não quero ser uma feia para o resto da vida. Quero aqueles olhos e lábios perfeitos, quero que todos me vejam e fiquem impressionados. E que todos que me virem perguntem “quem é ela?” e queiram me conhecer e queiram ouvir o que tenho a dizer. – Prefiro ter algo a dizer. – O que, por exemplo? Hoje matei um lobo e comi sua carne... – Tally, as pessoas não comem lobos. Acho que só coelhos e cervos – disse Shay rindo. – Ai, que nojo. Obrigada por me contar, Shay. – Bem, acho que prefiro ficar nos vegetais e nos peixes. Mas não estamos falando de acampar, Tally. Estamos falando de me tornar o que eu quero me tornar. Não o que um comitê cirúrgico pensa que eu devia ser. – Shay, você continua sendo a mesma por dentro. A diferença é que, quando se é perfeita, as pessoas prestam mais atenção. – Nem todo mundo pensa assim. – Tem certeza disso? De que pode superar a evolução sendo esperta ou interessante? Porque se estiver errada... se não voltar até fazer 20 anos, a operação também não vai funcionar. Vai ser feia para sempre. – Não vou voltar. Nunca.
A voz de Tally falhou, mas ela se esforçou para dizer: – Eu não vou com você. Elas se despediram perto da represa. A prancha de longa distância de Shay era mais grossa e brilhava por causa das células de energia solar. Ela tinha levado um casaco aquecido e um chapéu. Tally imaginou que os invernos na Fumaça deviam ser frios e sofridos. Não conseguia acreditar que a amiga estivesse realmente partindo. – Você sempre poderá voltar. Se for uma porcaria. – Nenhum dos meus amigos voltou – respondeu Shay. As palavras deixaram Tally meio assustada. Podia pensar num monte de razões terríveis que explicariam por que ninguém havia voltado. – Se cuida, Shay. – Você também. Não vai contar nada disso a ninguém, certo? – Nunca, Shay. – Jura? Qualquer que seja a situação? Tally levantou a mão com a cicatriz. – Juro. – Eu sei que não vai contar – disse, sorrindo. – Só precisava perguntar mais uma vez antes de... Shay pegou um pedaço de papel e entregou a Tally. – O que é isso? – Tally abriu o papel e viu algumas letras rabiscadas. – Quando aprendeu a escrever a mão?
– Todos aprendemos enquanto planejávamos a fuga. É uma boa ideia para quem não quer inspetores bisbilhotando seus diários. Bem, isso é para você. Não deveria deixar indicações sobre meu destino. Por isso, está numa espécie de código. Tally franziu a testa ao ler a primeira linha de palavras rabiscadas. – “Pegue a montanha até além do buraco”? – Isso. Entendeu? Só você seria capaz de entender, mesmo que alguém encontre o papel. É para o caso de querer vir atrás de mim – explicou Shay. Tally tentou dizer algo, mas não conseguiu. Apenas mexeu a cabeça, concordando. – Por precaução – insistiu Shay. Ela pulou sobre a prancha, estalou os dedos e ajeitou as alças da mochila nos dois ombros. – Tchau, Tally. – Tchau, Shay. Eu gostaria... Shay esperou, balançando levemente ao vento frio de setembro. Tally tentou imaginá–la envelhecendo, ganhando rugas, se arruinando aos poucos, sem nunca ter sido realmente bonita. Sem ter aprendido a se vestir corretamente ou a se comportar num baile formal. Sem ver uma pessoa encantada só de olhar em seus olhos. – Eu gostaria de ter visto como você ficaria. Perfeita. – Acho que vai ter de se conformar em lembrar do meu rosto desse jeito mesmo – disse Shay. Logo depois, ela se virou e levou a prancha para longe, na direção do rio. As palavras seguintes de Tally se perderam em meio ao rugido da água.



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